Por André Arany

 

Fornecedores de grande porte, como os bancos e empresas de telefonia, são, em larga medida, os principais agentes violadores de direitos do consumidor. Causam danos em escala. De tão conhecidos, são denominados litigantes habituais.

São empresas que, na visão da doutrina jurídica especializada, se utilizam da possibilidade de descumprir a legislação e, posteriormente, fazer acordos em juízo para o pagamento de valores indenizatórios pequenos, ou suportar o pagamento de condenações diminutas aos consumidores como estratégia de mercado.

Tais fornecedores atuam na perspectiva do cumprimento das determinações legais se esta medida lhes for economicamente conveniente.

A lei é tratada por tais empresas como mais um componente de custo e de risco em suas estratégias de marketing. Se for lucrativo, segundo a lógica do “custo x benefício”, descumprir a legislação de defesa do consumidor, por exemplo, essas empresas vão descumpri-la e dar continuidade à práticas abusivas lucrativas.

 

 

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Por isso o trabalho de conscientização dos juízes leigos dos juizados especiais cíveis brasileiros é de suma importância para retirar dos fornecedores essa perspectiva e, sobretudo, o proveito econômico obtido com a conduta antijurídica.

As condenações até aqui arbitradas pelo Poder Judiciário não tem se mostrado à altura do desafio de efetivamente prevenir a ocorrência de danos ao consumidor.

Ao contrário, tem “estimulado” a manutenção de práticas abusivas, contrárias à principiologia de proteção e defesa do consumidor. Impõe-se, pois, elevá-las a novos patamares.

Vale dizer que, se o Poder Judiciário se mantiver vinculado à ideia de que não pode enriquecer o ofendido, deixará de cumprir a sua função de punir o ofensor.

Resultado: acabará por retroalimentar novas condutas ilícitas, em manifesto confronto com os direitos dos consumidores, do que advirão novas ações de responsabilidade civil, pelo mesmo comportamento danoso, judicializando o problema e abarrotando serventias e gabinetes.

A grande maioria das atuais decisões proferidas por juízes leigos e, posteriormente, homologada por juízes togados, demonstra uma preocupação com o comportamento da parte Autora no sentido de analisar as tentativas de resolução administrativas das questões consumeristas judicializadas, sendo certo que a ausência de um simples número protocolo de reclamação pode, inclusive, resultar em uma improcedência, apesar de o demandante demonstrar o seu direito nos autos de determinado processo.

Ora, sabe-se que os Juizados Especiais Cíveis brasileiros enfrentam uma crise estrutural que compromete a celeridade dos trâmites processuais, entretanto, ao contrário da forma que o poder judiciário – como um todo – enxerga, a causa da proliferação de demandas repetitivas dá-se, única e exclusivamente, pelas reiteradas práticas abusivas perpetuadas por fornecedores de grande porte, os chamados litigantes habituais.

A massificação de demandas consumeristas evidencia a necessidade de reciclagem dos servidores e juízes leigos, a fim de retirar das empresas litigantes habituais a perspectiva de pagamento de condenações ínfimas aos consumidores como estratégia de mercado.

Essa necessidade fica ainda mais evidenciada diante do fato que a busca pela solução administrativa quase nunca é satisfatória, e, diante da realidade institucional brasileira, o cidadão acaba por recorrer ao único poder que tem a obrigação de lhe dar uma resolução, o poder judiciário.

Entenda as técnicas utilizadas pelo SAC das empresas litigantes habituais: técnicas do SAC para estressar o consumidor

Fato é que demora no trâmite processual demonstra a fragilidade do sistema em relação às grandes empresas litigantes habituais já que, na maioria dos casos, uma das partes tem interesse no prolongamento da lide. Segundo alerta Marinoni[1], a percepção de que a demora processual sempre beneficia o réu que não tem razão é fundamental para a compreensão da problemática do tempo do processo.

Em outras palavras: a dinâmica atual dos juizados especiais cíveis brasileiros cria um ambiente favorável para as grandes empresas litigantes habituais, de forma a protegê-las economicamente.

Fato é que as empresas mais demandadas em sede de juizado especial cível, os litigantes habituais, têm acesso à grandes escritórios de advocacia, têm seus próprios departamentos jurídicos e condições de arcar com os custos que milhares de demandas envolve.

Dessa forma, o litigante habitual tem maior experiência com os assuntos e com os procedimentos jurídicos, tem oportunidade de desenvolver relacionamentos com serventuários da justiça e membros do poder judiciário, além de dividir os riscos de demandas e testar diversas estratégias de modo a planejar atuação em demandas futuras.

Ferraz[2] publicou, em seu livro, uma entrevista com um sócio de um escritório de advocacia especializado em contencioso de massa de grandes empresas:

Na maioria das questões, eu oriento os meus clientes a não firmarem acordo, pois pode abrir precedente, estimular a propositura de mais demandas… eu dou ordens expressas ao advogado local para não conciliar. (…). Vou te dar um exemplo de um caso importante envolvendo uma grande empresa de cartão de crédito e um banco, que utilizavam uma prática considerada abusiva: se o titular do cartão fosse correntista e não pagasse a fatura do cartão no dia do vencimento, o saldo mínimo da fatura era debitado de sua conta corrente. Mesmo que seja uma prática discutível, enquanto não houvesse uma decisão a respeito em Cortes superiores, o banco ia adotando a medida, e, obviamente, recusando-se a fazer qualquer acordo nos Juizados. Você não imagina o ganho financeiro da instituição. Mesmo que ela tivesse que pagar indenizações por dano moral, ela ainda saía no lucro, porque são poucas pessoas que vão atrás do seu direito.

A declaração acima, de um sócio de um escritório especializado em direito bancário, demonstra que tais empresas se utilizam da possibilidade de descumprir a legislação enquanto essa medida lhe for economicamente conveniente, o que aumenta o número de processos distribuídos, mês a mês, em sede de juizado especial.

Esse aumento da litigiosidade gera um aumento do número de demandas e essa massificação de causas de pequeno valor impacta a produtividade dos juizados especiais cíveis fazendo com que o poder judiciário esqueça a finalidade maior e foque no objetivo de apenas prolatar sentenças e diminuir o número de processos em tramitação, atingido metas internas.

O consumidor brasileiro fica vulnerável diante de tal situação, já que as causas são julgadas em massa, e há a busca pela maximização dos resultados através do cumprimentos de metas, fazendo com que haja uma prestação jurisdicional de baixa qualidade.

Enquanto isso perdurar, o consumidor brasileiro continuará a perder…

 

 

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[1] MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do Processo Civil: o acesso à justiça e os institutos fundamentais do direito processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993, p. 17.

[2] FERRAZ, Leslie Shérida. Acesso à Justiça, uma análise dos Juizados Especiais Cíveis no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2010, p.126.

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